sábado, 20 de julho de 2013

Reflexo de um meneio desajeitado

Amélia pintava seus quadros sempre com o mesmo manusear dos pincéis, sempre seguindo sua metódica e sustentando sua neurose. Ao acabar, por mais impecável que estivesse sua obra, os defeitos realçavam aos seus olhos. Olhos arenosos e distantes, lunáticos.
Amélia não entendia o que a fazia cometer erros gravíssimos, imperdoáveis e absolutamente notáveis! Quem levaria para casa tais desastres? Buscando a resposta, relembrando cada passo de seus meneios, encontrou o que procurava. Encontrou onde o movimento do pincel fora executado de maneira errônea, e o pior de tudo, em todas as suas obras. Desesperada, soube que seguiu inconsciente e insanamente um roteiro criado por si própria, diante da repetição impetuosa de seus movimentos.
Procurando fugir de tal rotina que a destruía, Amélia forrou seu quarto com tecido crú e, dançando conforme Chopin propunha, pintou até mesmo a si. O som do piano ficava mais alto e mais forte a cada pincelada que aquelas paredes envolvidas por tela recebiam.
Amélia girava em torno de seu próprio eixo, enquanto lágrimas furiosas sem destino prévio rolavam pela sua face. Seus gritos já não podiam ser ouvidos, pois já não existiam.
Exausta, jogada ao chão, sobre pincéis sujos e quebrados, decidiu fugir de seu mundo para ver o que podem oferecer lá fora. Ao retirar o primeiro retalho de tecido de sua parede, deparou-se com o espelho. Amélia não suportou. Foi encontrada já sem sinais vitais aos pés de sua penteadeira num dia de feriado qualquer.


                                                        A.B.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Romeu, o degustador de mentiras

A minha mentira vai além dos outros, além de seus alvos objetivamente planejados. Minto para mim, e torno real minha própria desgraça. Desgraça divinizada em sentimentos surreais. Faço de minhas palavras, embaraçosas artes abstratas e longe, longe de se concretizarem.
Não afeto ninguém, não causo caos. Me deprimo. Onde está a realização do meu objetivo? Olho no espelho e me vejo em cacos. Encontro em cada pedaço o sabor de minha mentira atingindo seu próprio criador.
Limpo o sangue derramado com minhas próprias mãos, que agora carregam consigo mais uma marca, o preço de um trabalho muito (?), mas muito bem efetuado.
Optei por mentir frente ao espelho, olhando em meus olhos e ouvindo minhas palavras percorrerem e valsarem por cada canto do meu corpo.
Alvo atingido com um infeliz sucesso.

Você não mente frente ao espelho esperando que outra pessoa engula seus cacos ensaguentados por palavras, não?


                                         A.B.

O segundo adeus de Cecília

Num banco de jardim, naquela mesma namoradeira, Cecília não namorava ninguém a não ser a si própria. Admirando a folhagem avermelhada dispersa ao seu redor, sonhava com dias que jamais chegariam, com amores que na escuridão de seu coração [guardados a sete chaves] jamais seriam revelados.
Aquelas nuvens de um dia comum, representavam para ela sentimentos que [em sua teoria existencial] foram esboçados por um ser superior. Sabia ela desta tal existência? Não, teorias são teorias, e Cecília pouco estava interessada em comprová-las.
Aquela brisa que obrigava seus cabelos a dançarem sem rumo, a fazia sentir mais viva, mais apaixonada e menos certa.
Quem era o suposto dono daquele sentimento que Cecília mal conhecia? O suposto dono de seu coração [caso ela tivesse um]? Haviam muitos amores, mas qual deles a alucinava naquele momento?
Ela amava sozinha. Sua solução foi se amar.
Quem mais engoliria seus defeitos ao sobressaírem suas qualidades? Sim, apenas Cecília.
Sabendo que não poderia cantar para si, lhe dar as mãos, acariciar seus próprios cabelos pelo resto de sua vida, resolveu deixar o céu, a brisa, o banco, para corrigir seus erros, amenizar seus defeitos e se modelar para se expor ao amor.
Seu maior erro foi deixar o medo de não saber amar a impedir de ser amada.
Rotulada, moldada, revestida com seda alva, não foi amada.
Perdeu o amor, o banco, a brisa, o céu e a si. Perdeu-se de si.
Adeus, Cecília. Você precisa acordar.


                                         A. B.

sábado, 27 de abril de 2013

A gérbera e a bailarina

Competindo com sua própria sombra, Ravena dançava como se sua vida dependesse de seus movimentos. Das coxias, ouvia-se apenas os aplausos histéricos vindos da platéia.
Na primeira fileira, estava sentado um senhor, cujo brilho nos olhos podia ser notado ao longe, e visivelmente direcionado à bailarina. Suas mãos seguravam uma gérbera vermelha, envolvida num papel de seda com um laço dourado. Segurava com tanta firmeza, que o enfeite da flor se amassava a cada batida de seu coração.
O espetáculo chegou ao fim, e todos levantaram de seus acentos para aplaudirem o grande talento da estrela do show.
O teatro esvaziava cada vez mais. Passavam vinte, trinta, quarenta minutos, e ali estava o mesmo senhor, na mesma poltrona, com o mesmo brilho nos olhos. "Senhor, o recinto vai fechar em dez minutos. Já está tarde, é melhor ir embora" disse o faxineiro.  "Então aguardarei mais dez minutos. Eu sei que Ravena aparecerá!", respondeu o homem com um sorriso esperançoso. "O elenco do espetáculo já foi embora, senhor..."
Foi como se aquelas palavras tivessem arruinado tudo o que restava daquele corpo de sessenta e oito anos, que se levantou cabisbaixo e foi embora.
Na manhã seguinte, acordou cantarolando Fairy Tale, música interpretada por sua amada na noite anterior. Pegou a flor murcha de cima de seu criado e guardou-a numa velha caixa de sapato, onde se encontravam incontáveis gérberas como aquela, secas.
Revirou os bolsos de sua calça, e tirou de um deles um panfleto; "Reapresentação: Sexta-Feira, 25 de Setembro". Um sorriso inocente e intenso floresceu em seu rosto, alegrando novamente sua face, que já estava irreconhecível comparada àquela noite.
Na floricultura, comprou uma gérbera vermelha, e mandou o florista enfeitá-la com papel de seda, e um laço dourado.
Em sua casa, vestiu seu melhor suéter, passou gel no pouco de cabelo que lhe restava e o penteou para trás. Barbeou-se e perfumou-se. Colocou em seu bolso seu ingresso e um cartão feito à mão. "Hoje vou vê-la. Hoje digo à minha bailarina que a amo há quinze anos, mesmo sabendo que ela nunca notou a minha presença em meio a tantos fãs, tão mais jovens, e tão mais elegantes. Mas digo que a amo, há quinze anos, desde que me ajeito naquele acento, com uma gérbera vermelha nas mãos". Sorriu, e rumou ao teatro.
Sentou-se na mesma fileira, na mesma poltrona, com o mesmo brilho nos olhos capaz de iluminar o recinto inteiro.
Fairy Tale começou a tocar. Nas primeiras notas de piano, sentiu bater mais forte seu coração dentro de seu peito. Ele palpitava como se fosse a última vez. E foi.
Ravena finalmente entrou no palco. Competindo com sua própria sombra, dançou como se sua vida dependesse de seus movimentos. A música parou. Olhou para a platéia preparando-se para o agradecimento, quando acompanhou uma gérbera vermelha rolar pelo chão. Ouviu gritos de desespero, e procurou o que havia de errado.
O senhor da primeira fileira deixou escapar de suas mãos a flor que daria à sua amada, por não ter mais condições de segurá-la. Com um grito abafado, seus olhos fecharam e seu coração finalmente parou de bater.
A bailarina caiu sobre suas pernas, sua respiração ofegava cada vez mais. Já não tinha o controle de seu corpo, nem de suas emoções. Eram lágrimas a serem culpadas por borrar sua maquiagem. Não, sua maquiagem já não tinha mais importância.
Seus olhos direcionados ao acento daquele homem, gritavam a dor de sua culpa. Culpa que carregaria pelo resto de sua vida. "Hoje eu desceria do palco só para vê-lo. Eu diria a ele que o amo, há quinze anos. Desde quinze anos atrás, quando ele se ajeitou pela primeira vez naquele acento, com uma gérbera vermelha nas mãos. Mesmo eu sabendo que, para ele, não passaria de uma bailaria, tão jovem e tão inexperiente".
Mal sabia ela que fora a única bailarina da vida daquele senhor, que mal sabia que fora o único senhor da vida daquela bailarina.


                                       A.B.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Antes que você se vá

Dancei até meus pés não conseguirem mais me sustentar. Cantei até minha voz se recusar a dar sinal de si. Desenhei até minhas pálpebras caírem, sem retorno. Escrevi até minhas mãos perderem o rumo. Gritei, até minhas lágrimas falarem por mim o que meu brado tentou dizer, gerando apenas recusa em seus ouvintes.
Tentando desviar o sentido que aqueles pensamentos estavam tomando em minha mente, corri. Corri incessantemente, para longe. Mas a verdade será sempre a mesma. Tanto aqui, quanto lá.
Mas quando você chegar, não haverá mais verdade alguma. Apenas certezas. Certezas que parecerão incertas, mas satisfações não serão necessárias.
Dançaremos até meus pés não conseguirem mais me sustentar. Então, você me carregará. Cantaremos até minha voz se recusar dar sinal de si, mas você não se importará. Desenharemos nossas silhuetas tão próximas quanto nós deveras estaremos. Escreveremos demasiadamente, a ponto que não consigamos mais entrelaçar nossos dedos. Não gritarei. Você não permitirá que isso seja necessário, muito menos que minhas lágrimas digam algo. Pois elas não existirão.
Você me fará crer em sua verdade, e não precisarei correr para desviar o rumo que tomarão meus pensamentos. E quando eu finalmente puder olhar no fundo dos seus olhos,
acordarei.


                                      A.B.