Competindo com sua própria sombra, Ravena dançava como se sua vida dependesse de seus movimentos. Das coxias, ouvia-se apenas os aplausos histéricos vindos da platéia.
Na primeira fileira, estava sentado um senhor, cujo brilho nos olhos podia ser notado ao longe, e visivelmente direcionado à bailarina. Suas mãos seguravam uma gérbera vermelha, envolvida num papel de seda com um laço dourado. Segurava com tanta firmeza, que o enfeite da flor se amassava a cada batida de seu coração.
O espetáculo chegou ao fim, e todos levantaram de seus acentos para aplaudirem o grande talento da estrela do show.
O teatro esvaziava cada vez mais. Passavam vinte, trinta, quarenta minutos, e ali estava o mesmo senhor, na mesma poltrona, com o mesmo brilho nos olhos. "Senhor, o recinto vai fechar em dez minutos. Já está tarde, é melhor ir embora" disse o faxineiro. "Então aguardarei mais dez minutos. Eu sei que Ravena aparecerá!", respondeu o homem com um sorriso esperançoso. "O elenco do espetáculo já foi embora, senhor..."
Foi como se aquelas palavras tivessem arruinado tudo o que restava daquele corpo de sessenta e oito anos, que se levantou cabisbaixo e foi embora.
Na manhã seguinte, acordou cantarolando
Fairy Tale, música interpretada por sua amada na noite anterior. Pegou a flor murcha de cima de seu criado e guardou-a numa velha caixa de sapato, onde se encontravam incontáveis gérberas como aquela, secas.
Revirou os bolsos de sua calça, e tirou de um deles um panfleto; "Reapresentação: Sexta-Feira, 25 de Setembro". Um sorriso inocente e intenso floresceu em seu rosto, alegrando novamente sua face, que já estava irreconhecível comparada àquela noite.
Na floricultura, comprou uma gérbera vermelha, e mandou o florista enfeitá-la com papel de seda, e um laço dourado.
Em sua casa, vestiu seu melhor suéter, passou gel no pouco de cabelo que lhe restava e o penteou para trás. Barbeou-se e perfumou-se. Colocou em seu bolso seu ingresso e um cartão feito à mão. "Hoje vou vê-la. Hoje digo à minha bailarina que a amo há quinze anos, mesmo sabendo que ela nunca notou a minha presença em meio a tantos fãs, tão mais jovens, e tão mais elegantes. Mas digo que a amo, há quinze anos, desde que me ajeito naquele acento, com uma gérbera vermelha nas mãos". Sorriu, e rumou ao teatro.
Sentou-se na mesma fileira, na mesma poltrona, com o mesmo brilho nos olhos capaz de iluminar o recinto inteiro.
Fairy Tale começou a tocar. Nas primeiras notas de piano, sentiu bater mais forte seu coração dentro de seu peito. Ele palpitava como se fosse a última vez. E foi.
Ravena finalmente entrou no palco. Competindo com sua própria sombra, dançou como se sua vida dependesse de seus movimentos. A música parou. Olhou para a platéia preparando-se para o agradecimento, quando acompanhou uma gérbera vermelha rolar pelo chão. Ouviu gritos de desespero, e procurou o que havia de errado.
O senhor da primeira fileira deixou escapar de suas mãos a flor que daria à sua amada, por não ter mais condições de segurá-la. Com um grito abafado, seus olhos fecharam e seu coração finalmente parou de bater.
A bailarina caiu sobre suas pernas, sua respiração ofegava cada vez mais. Já não tinha o controle de seu corpo, nem de suas emoções. Eram lágrimas a serem culpadas por borrar sua maquiagem. Não, sua maquiagem já não tinha mais importância.
Seus olhos direcionados ao acento daquele homem, gritavam a dor de sua culpa. Culpa que carregaria pelo resto de sua vida. "Hoje eu desceria do palco só para vê-lo. Eu diria a ele que o amo, há quinze anos. Desde quinze anos atrás, quando ele se ajeitou pela primeira vez naquele acento, com uma gérbera vermelha nas mãos. Mesmo eu sabendo que, para ele, não passaria de uma bailaria, tão jovem e tão inexperiente".
Mal sabia ela que fora a única bailarina da vida daquele senhor, que mal sabia que fora o único senhor da vida daquela bailarina.
A.B.